quinta-feira, 23 de maio de 2013

Artigo: O imperialismo da razão neoliberal por Pierre Bourdieu e Löic Wacquan

O imperialismo da razão neoliberal
por Pierre Bourdieu e Löic Wacquant [*]

http://resistir.info/franca/imagens/camara_escura.gifEm todos os países avançados, patrões, altos funcionários internacionais, intelectuais de projeção nos media e jornalistas do top, estão de acordo em falar uma estranha novilíngua [1] cujo vocabulário, aparentemente sem origem, circula por todas as bocas: “globalização”, “flexibilidade”, “governabilidade” e “em-pregabilidade”, “underclass” e “exclusão”, “nova economia” e “tolerância zero”, “comunitarismo” [2] , “multiculturalismo” e os seus primos “pós-modernos”, “etnicidade”, “minoridade”, “identidade”, “fragmentação”, etc.

A difusão dessa nova vulgata planetária – da qual se encontram notavelmente ausentes capitalismo, classe, exploração, dominação, desigualdade, e tantos vocábulos decisivamente revogados sob o pretexto de obsolescência ou de uma presumível falta de pertinência – é produto de um imperialismo apropriadamente simbólico: os seus efeitos são tão poderosos e perniciosos porque ele é veiculado não apenas pelos partidários da revolução neoliberal - a qual, sob a capa da “modernização”, entende reconstruir o mundo fazendo tábua rasa das conquistas sociais e econômicas resultantes de cem anos de lutas sociais, descritas agora como arcaísmos e obstáculos à nova ordem nascente –, mas também por produtores culturais (pesquisadores, escritores, artistas) e militantes de esquerda que, na sua maioria, continuam a considerar-se progressistas.

IMPERIALISMO CULTURAL 

Como as dominações de gênero e etnia, o imperialismo cultural constitui uma violência simbólica que se apóia numa relação de comunicação coerciva para extorquir a submissão e cuja particularidade consiste, neste caso, no fato de universalizar particularismos vinculados a uma experiência histórica singular, ao fazer com que sejam desconhecidos enquanto tal e reconhecidos como universais .

Desta forma, também no século XIX muitas questões ditas filosóficas que eram debatidas em toda a Europa, como o tema spengleriano da “decadência”, partiam de particularidades e conflitos históricos próprios do universo específico dos universitários alemães [4] , da mesma forma que hoje, inúmeros tópicos provenientes de confrontos intelectuais ligados a particularidades e particularismos da sociedade e das universidades norte-americanas se impuseram, aparentemente fora de um contexto histórico, ao conjunto do planeta.

Definições e deduções. Esses lugares-comuns, no sentido aristotélico de noções ou teses que servem de argumento sobre as quais não se argumenta, devem o essencial da sua força de convicção ao prestígio do seu ponto de partida e ao fato de que, ao circularem continuamente entre Berlim e Buenos Aires ou de Londres a Lisboa, estarem simultaneamente em toda parte e serem poderosamente transmitidos por essas instâncias supostamente neutras do pensamento neutro que são os grandes organismos internacionais. Instâncias como o Banco Mundial, a Comissão Européia, a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos (OCDE), enfim, os “bancos de idéias” do pensamento conservador (o Manhattam Institute, em Nova York, o Adam Smith Institute, em Londres, a ex-Fondation Saint-Simon, em Paris, a Deutsche Bank Fundation, em Frankfurt), as fundações de filantropia, as escolas do poder (Science-Politique, em França, a London School of Economics, na Inglaterra, a Harvard Kennedy School of Government, nos Estados Unidos, etc.) e os grandes meios de comunicação, divulgadores infatigáveis dessa língua geral, sem fronteiras, perfeita para dar a ilusão de ultramodernismo aos editorialistas apressados e especialistas ciosos da importação-exportação cultural.

Além do efeito automático da circulação internacional das idéias que, pela sua própria lógica, tende a ocultar as condições e os significados originais , o jogo das definições prévias e deduções escolásticas substitui a contingência das necessidades sociológicas negadas pela aparência da necessidade lógica e tende a ocultar as raízes históricas de todo um conjunto de questões e de noções: a “eficácia” do mercado (livre), a necessidade de reconhecimento das “identidades” (culturais), ou ainda a reafirmação-celebração da “responsabilidade” (individual), que serão decretadas filosóficas, sociológicas, econômicas ou políticas, segundo o lugar e o momento de recepção.

A MITOLOGIA DO “SONHO AMERICANO” 

Planetarizados, globalizados, no sentido estritamente geográfico, e ao mesmo tempo desparticularizados, esses lugares-comuns, ao serem ruminados pelos meios de comunicação transformam-se num senso comum universal, fazendo esquecer que, na maioria das vezes, eles apenas exprimem - de forma truncada e irreconhecível, até por aqueles que os propagam - realidades complexas e contestadas de uma sociedade histórica particular, tacitamente constituída em modelo e na medida de todas as coisas: a sociedade norte-americana da era pós-fordista e pós- keynesiana. Esse único superpoder, essa Meca simbólica da Terra, caracteriza-se pelo desmantelamento deliberado do Estado social e pelo hiper-crescimento correlativo do Estado penal, o esmagamento do movimento sindical e a ditadura da concepção de empresa fundada apenas no “valor-acionário”, assim como nas suas conseqüências sociológicas: a generalização dos salários precários e da insegurança social, transformada em motor privilegiado da atividade econômica.

É o que ocorre, por exemplo, com o debate vago e fraco em torno do “multiculturalismo”, termo importado, na Europa, para designar o pluralismo cultural na esfera cívica, enquanto nos Estados Unidos se refere, no interior do próprio movimento pelo qual ele os mascara, à exclusão contínua dos negros e à mitologia nacional do “sonho americano” da “oportunidade para todos”, correlativa da falência que afeta o sistema do ensino público num momento em que a competição pelo capital cultural se intensifica e quando as desigualdades de classe crescem vertiginosamente.

A DEMISSÃO DO ESTADO 

O adjetivo “multicultural” encobre essa crise ao confiná-la, artificialmente, apenas no microcosmo universitário e ao expressá-la num registro ostensivamente “étnico”, quando o seu verdadeiro desafio não é o reconhecimento das culturas marginalizadas pelos cânones acadêmicos, mas antes o acesso aos instrumentos de (re)produção das classes médias e superiores, como a universidade, num contexto de demissão ativa e massiva do Estado.

O “multiculturalismo” americano não é nem um conceito nem uma teoria, nem um movimento social ou político – ainda que pretenda ser tudo isso ao mesmo tempo. É um discurso-écran cujo estatuto intelectual resulta de um gigantesco efeito de alodoxia [6] nacional e internacional que engana tanto aqueles que estão nele como os que não estão. Além do que é um discurso norte-americano, embora pense e se apresente como universal, ao exprimir as contradições específicas da situação de universitários que, afastados de qualquer acesso à esfera pública e submetidos a uma forte diferenciação no seu meio profissional, não têm outro terreno onde investir a sua libido política fora das disputas de campus disfarçadas de epopéias conceituais.

AS DELÍCIAS DO “RECONHECIMENTO CULTURAL” 

O que significa que o “multiculturalismo” leva consigo, para onde quer que seja exportado, três vícios do pensamento nacional norte-americano que são, (a) o “grupismo”, que reifica as divisões sociais, canonizadas pela burocracia estatal, em princípios do conhecimento e da reivindicação política; (b) o populismo, que toma o lugar da análise das estruturas e dos mecanismos de dominação pela celebração da cultura dos dominados e do seu “ponto de vista” - elevado ao nível de prototeoria em ação; (c) o moralismo, que é um obstáculo à aplicação de um materialismo racional sadio na análise do mundo social e econômico, condenando-nos a um debate sem efeito nem fim sobre o necessário “reconhecimento das identidades” enquanto, na triste realidade do quotidiano, o problema não se situa de forma alguma nesse nível [7] . Enquanto os filósofos se deliciam doutamente com o “reconhecimento cultural”, dezenas de milhares de crianças de classes e etnias dominadas são excluídas das escolas primárias por falta de vagas (eram 25.000 só este ano, na cidade de Los Angeles), e um jovem em cada dez provenientes de famílias que ganham menos de 15.000 dólares anuais tem acesso aos campi universitários, contra 94% das crianças de famílias que dispõem de mais de 100 000 dólares.

Poder-se-ia fazer a mesma demonstração a propósito da noção fortemente polissêmica de “globalização”, que tem como efeito, se não como função, vestir de ecumenismo cultural ou de fatalismo economista os efeitos do imperialismo norte-americano e de fazer aparecer uma relação de força transnacional como uma necessidade natural. No termo de um retorno simbólico baseado na naturalização dos esquemas do pensamento neoliberal cuja dominação se impõe há vinte anos graças ao trabalho dos think tanks (bancos de idéias) conservadores e dos seus aliados nos campos político e jornalístico [8] , a moldagem das relações sociais e das práticas culturais conforme o padrão norte-americano, imposta às sociedades avançadas através da pauperização do Estado, mercantilização dos bens públicos e generalização da insegurança salarial, é aceita com resignação como resultado obrigatório das evoluções nacionais, quando não é celebrada com um entusiasmo de carneirinhos. A análise empírica da evolução das economias avançadas de longa duração sugere no entanto que a “globalização” não é uma nova fase do capitalismo, mas antes uma “retórica” invocada pelos governos para justificar a sua submissão voluntária aos mercados financeiros. A desindustrialização, o crescimento das desigualdades e a contradição das políticas sociais, longe de serem a conseqüência fatal do crescimento das trocas externas, como habitualmente se diz, resultam de decisões de política interna que refletem a mudança das relações de classe a favor dos proprietários do capital [9] .

A REFORMATAÇÃO DO MUNDO 

Ao imporem ao resto do mundo categorias de percepção homólogas às suas estruturas sociais, os Estados Unidos reformatam o mundo à sua imagem: a colonização mental operada através da difusão desses verdadeiros-falsos conceitos apenas pode conduzir a uma espécie de “Consenso de Washington” generalizado, e até espontâneo, como se pode observar correntemente em matéria de economia, de filantropia ou de ensino de. Efetivamente, esse discurso duplo fundamentado na crença que imita a ciência, sobrepondo ao fantasma social do dominante a aparência da razão (especialmente econômica e politológica), é dotado do poder de realizar realidades que pretende descrever segundo o princípio da profecia auto-realizadora: presente nos espíritos daqueles que tomam decisões políticas ou econômicas e de seus públicos, ele serve de instrumento de construção de políticas públicas e privadas, ao mesmo tempo que é instrumento de avaliação dessas políticas. Como todas as mitologias da idade da ciência, a nova vulgata planetária apóia-se numa série de oposições e equivalências, que se sustentam e contrapõem, para descrever as transformações contemporâneas das sociedades avançadas: desenvestimento econômico do Estado e ênfase nas suas componentes policiais e penais, desregulação dos fluxos financeiros e desorganização do mercado de trabalho, redução das proteções sociais e celebração moralizadora da “responsabilidade individual”: 
MERCADO
ESTADO
liberdade
coerção
aberto
fechado
flexível
rígido
dinâmico, móvel
imóvel, paralisado
futuro, novidade
passado, ultrapassado
crescimento
imobilismo, arcaísmo
indivíduo, individualismo
grupo, coletivismo
diversidade, autenticidade
uniformidade, artificialidade
democrático
autocrático ("totalitário")
O imperialismo da razão neoliberal encontra a sua realização intelectual em duas novas figuras exemplares da produção cultural. Primeiramente o especialista que prepara, na sombra dos bastidores ministeriais ou patronais ou no segredo dos think tanks (bancos de idéias), documentos de um forte cunho técnico, e tanto quanto possível construídos em linguagem econômica e matemática. De seguida, o conselheiro em comunicação do príncipe, trânsfuga do mundo universitário agora ao serviço dos dominantes, cujo serviço é dar forma acadêmica aos projetos políticos da nova nobreza de Estado e da empresa. O modelo planetário e incontestado é o do sociólogo britânico Anthony Giddens, professor da Universidade de Cambridge, agora à frente da London School of Economics e pai da “teoria da estruturação”, síntese escolástica de diversas tradições sociológicas e filosóficas.

UM CAVALO DE TRÓIA DE DUAS CABEÇAS 

Pode perceber-se a encarnação por excelência do estratagema da razão imperialista no fato de que é a Grã-Bretanha, posta por razões históricas, culturais e lingüísticas em posição intermediária, neutra, entre os Estados Unidos e a Europa continental, que fornece ao mundo esse cavalo de Tróia de duas cabeças — uma política e a outra intelectual — na pessoa dual de Anthony Blair e Anthony Giddens, “teórico” autoproclamado da “terceira via”, que afirma, textualmente, que “adoto uma atitude positiva em relação à globalização”; “tento [sic] reagir às novas formas de desigualdades”, advertindo logo, porém, que “os pobres de hoje não são semelhantes aos de ontem, (...) assim como os ricos não se parecem mais com aqueles que no passado o foram”; “aceito a idéia de que os sistemas de proteção social existentes, e a estrutura do conjunto do Estado, são a fonte dos problemas, e não apenas a solução para resolvê-los”; “enfatizo o fato de que as políticas econômicas e sociais se encontram relacionadas”, para afirmar ainda que “as despesas sociais devem ser avaliadas ao nível das suas conseqüências para a economia no seu conjunto”, e, finalmente, “preocupo-me com os mecanismos de exclusão” que descobre “na base da sociedade, mas também no topo [sic]”, convencido de que “redefinir a desigualdade em relação à exclusão nesses dois níveis” é “conforme a uma concepção dinâmica da desigualdade” [10] .

Os mestres da economia podem dormir tranqüilos pois encontraram o seu Pangloss.

Notas

[1] Referência a “1984”, de George Orwell. Designa o uso de termos que desconsideram o vocabulário corrente e produzem termos que tornam hermética a compreensão do fenómeno relatado. Isso se dá na esfera política e filosófica.
[2] Comunitarismo é um conceito teorizado por Charles Taylor, Michael Walzer, Alasdair McIntyre. Valoriza a comunidade como um bem em si, assim como a igualdade e a liberdade, sendo o espaço no qual os indivíduos podem se exprimir, partilhar valores. Os seus críticos vêem nesse conceito a teorização dos guetos.
[3] É bom deixar claro que não detêm o monopólio na pretensão ao universal. Diversos outros países — a França, a Grã-Bretanha, a Alemanha, a Espanha, o Japão, a Rússia — exerceram, ou tentam ainda exercer, nos seus círculos de influência, formas de imperialismo cultural bastante semelhantes. A grande diferença é que, pela primeira vez na história, um único país se encontra em posição de impor o seu ponto de vista ao mundo inteiro.
[4] Cf. Ringer, Fritz. The Decline of the Mandarins. Cambridge University Press, Cambridge, 1969.
[5] Bourdieu, Pierre. Les Conditions Sociales de la Circulation Internationale des Idées. Romanistische Zeitschrift für Literaturgeschichte. 14 -1/2, Heidelberg, 1990, p. 1-10.
[6] Alodoxia: o fato de tomar uma coisa por outra.
[7] Assim como a globalização das trocas materiais e simbólicas, a diversidade das culturas não data do século actual, já que ela é co-extensiva à história da humanidade, como haviam observado já Émile Dürkheim e Marcel Mauss na sua “Note sur la notion de civilisation” (Année sociologique, nº 12, 1913, p. 46-50, III vol., Éditions de Minuit, Paris, 1968).
[8] Cf. Dixon, Keith. Les Évangelistes du marché. Raisons d'agir Éditions, Paris, 1998.
[9] Em relação à “globalização” como “projecto norte-americano” visando a impor o conceito de “valor-acionário” da empresa, ler, de Neil Fligstein, “Rhétorique et realités de la “mondialisation”, Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, nº 119, setembro de 1997, p. 36-47.
[10] Estes trechos foram retirados do catálogo de definições escolares de suas teorias e opiniões políticas que Anthony Giddens propôs ao programa “FAQs (Frequently Asked Questions)”, no seu site na Internet.
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[*] Pierre Bourdieu, do Collège de France , é autor de A Reprodução – Elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino; Razões Práticas; Economia das Trocas Simbólicas , entre outros.   Löic Wacquant, da Universidade de Berkeley, é autor de As Prisões da Miséria; Punir os Pobres , entre outros.

O original em português encontra-se na Revista Possibilidades , publicação do NPM - Núcleo de Pesquisa Marxista. Ano 1, num. 1, Jul./Set de 2004. páginas 24-28.
Tradução de Teresa Van Acker; revisão de Rui Bebiano. 


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